Catálogo
SINOPSE
«O meu pai diz que passo muito tempo em casa, diz que devo comunicar com as pessoas, e eu, claro, obedeço porque o meu pai costuma dar bons conselhos e usa barba. Muito bem, disse-lhe eu, mas o que significa misantropo?» Um brilhante conjunto de situações e de personagens do quotidiano com um acento de reflexão sobre a atualidade social - a Crise - de forma acessível e sensível aos mais jovens.
Apresentação de Assim, mas sem ser assim, de Afonso Cruz
Em Assim, mas sem ser assim continuamos no universo de A Contradição Humana, álbum escrito e ilustrado por Afonso Cruz e que mereceu vários prémios e distinções pela originalidade da voz nele plasmada. Parece até que a voz narrativa desse álbum cresceu e amadureceu um pouco, mantendo o seu olhar atento, reflexivo e crítico sobre o mundo e as suas contradições, mas agora também as suas desigualdades e injustiças, conduzindo-o a olhar em seu redor e a aperceber-se das consequências mais duras dessas mesmas contradições humanas.
O mundo é, já o sabíamos desde o volume anterior, um lugar estranho, habitado por pessoas ainda mais estranhas e singulares. As idiossincrasias pessoais, decorrentes de traços de personalidade ou de gostos particulares, configuram, na primeira parte do livro, exemplos da diversidade humana com a qual o narrador se vê confrontado, estimulando o contacto com a diferença e a sua aparente aceitação.
Mas, no segmento final da narrativa, correspondente à última página, essas personagens e os respetivos comportamentos surgem também, aos olhos do narrador, como termos de comparação com outro tipo de realidades e vivências igualmente próximas, implicitamente alvo de denúncia. A diferença reside no facto de que, no segundo caso, os comportamentos da criança que o narrador observa da sua janela, apesar de semelhantes aos dos vizinhos, não resultam, como no caso daqueles, da sua vontade ou escolha individual, mas de circunstâncias e condicionantes aparentemente incompreensíveis para a voz narrativa.
O olhar inocente, ingénuo e, de alguma forma, impoluto que perspetiva o real, perceptível até do ponto de vista linguístico, na forma como procura dominar o sentido das palavras, põe a nu os desequilíbrios e desajustes de um microcosmos muito particular: os vizinhos que partilham os vários andares do prédio onde vive e com os quais é “incentivado” pelo pai (que tem barba e dá bons conselhos) a “comunicar”, procurando entabular com eles algumas conversas, com maior ou menor resistência da parte dos visados. Em alguns casos, as situações criadas nestas tentativas de comunicação estão pontuadas pelo humor que decorre do cómico de situação ou de personagem, como acontece quando toca à campainha do vizinho poeta durante quatro minutos e vinte e três segundos. As tentativas de comunicação que leva a cabo de forma metodológica e organizada não são caracterizadas pela espontaneidade de encontros esporádicos entre vizinhos, mas decorrem de um sistema particular do narrador com vista a alargar as suas capacidades “comunicativas”, revelando, em alguns momentos, características de uma estratégia quase científica, porque as conclusões retiradas decorrem da observação atenta e crítica dos “fenómenos”.
É através dos sucessivos exercícios de comunicação realizados, descritos com pormenor pelo narrador criança, que é construído o retrato das personagens: a vizinha modelo, magra e extremamente elegante, e o seu namorado capaz de comer qualquer coisa, e de engolir sapos, o vizinho poeta, solitário e que recusa a tecnologia, o vizinho que o saúda com “rock’n’roll”, a vizinha obesa que faz dieta mas tem momentos de fraqueza, o vizinho que constrói objetos a partir do lixo, o vizinho bailarino, que gosta de andar descalço e de dormir ao relento, o vizinho mecânico que anda sempre sujo, o vizinho pedinchão e o pai que diz que não e o vizinho muito sério que usa gravata.
Os vários vizinhos ilustram as incoerências e contradições do mundo dos adultos ao mesmo tempo que, por serem objeto da perceção infantil, permitem problematizar a inexistência de verdades universais e de comportamentos socialmente inaceitáveis.
A maioria das ilustrações, mais do que repetir o texto ou procurar estabelecer com ele uma relação de complementaridade, parecem comentar as várias cenas descritas, funcionando como aprofundamento ou resposta às questões e problemas nele levantados. Assim, à pergunta colocada pelo narrador sobre como se chamava o menino que não queria crescer, a imagem responde com a representação do Peter Pan. O mesmo acontece com a segunda ilustração, na qual a pergunta “E sopa de legumes?” pode ser lida como comentário irónico à enumeração de comidas exóticas que a personagem adulta diz ser capaz de comer. A representação da Fada Sininho numa outra ilustração pretende funcionar metaforicamente como símbolo da magia que, segundo o narrador, ocorre em resultado da transformação operada pelo vizinho do 8A. A sugestão metafórica também está presente na imagem que procura ilustrar a força e o peso das palavras, recorrendo à imagem do halterofilista na boca da personagem.
A imagem final, contudo, é a mais literal de todas, revelando a mensagem-chave do livro. A representação da criança com sinais evidentes de pobreza, subnutrição e desamparo funciona como uma espécie de alerta para uma realidade escondida que o narrador põe a descoberto, impelindo a reflexão e possivelmente a ação. Assim representado, frente a frente, perante o leitor, não permite que se possa ignorar esta realidade chocante que, assim exibida, não pode passar despercebida ao narrador. A incompreensão face ao que o rodeia decorre de uma espécie de sentido de justiça e de ordem inato à criança, anterior à sua própria socialização aqui entendida enquanto organização do mundo segundo outros valores que não os da mais elementar justiça humana.
Claramente destinado quer a crianças quer a adultos, o livro constitui uma espécie de revelação de uma verdade universal que preferimos esconder ou ignorar, sob a capa de cariz mais ou menos social ou político. A mensagem implícita será, entre outras possíveis, a de que a relação das pessoas umas com as outras e com o mundo necessita de ser repensada e perspetivada segundo um ponto de vista mais humano e mais justo.
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